Abibiman, uma voz negra no sertão pernambucano
Desde o seu lançamento, em julho de 2019, o Site Negritos tem se consolidado como um acervo digital sobre uma parte significativa das memórias negras brasileiras, a imprensa negra. Em um tempo de auge das mídias digitais, localizar, ler, visibilizar e escutar vozes negras registradas em textos escritos é parte da luta para barrar as tantas ações que visam o apagamento da presença negra no nosso país. Assim, como expresso na primeira apresentação do site, o Projeto Negritos tem como propósito disponibilizar jornais da imprensa negra da região do Nordeste brasileiro, por meio da digitalização dos periódicos pesquisados. Na primeira etapa, com apoio do Rumos Itaú Cultural, digitalizamos a coleção de cinco jornais pernambucanos e um jornal baiano, todos da capital. São eles: Angola, Negritude, Negração e Djumbay (PE) e jornal do Movimento Negro Unificado (BA).
Mas, a movimentação negra não esteve circunscrita apenas às capitais. Ao contrário. Pesquisa em curso sobre a imprensa negra no Nordeste tem revelado a existência de periódicos negros em todas as regiões das unidades federativas. Foi nessa caminhada que chegamos ao Jornal Abibiman, veículo de comunicação da ARCA (Associação de Resgate da Cultura Afro de Arcoverde), produzido no período de 1995 a 2008, na cidade de Arcoverde, sertão pernambucano, que hoje temos a alegria de agregar ao acervo digital Negritos. Tal ação integra o projeto Abibiman, a voz negra do sertão pernambucano, apoiado pelo Funcultura e coordenado pela escritora Inaldete Pinheiro de Andrade, que me convidou para compor a coordenação e conduzir a pesquisa.
O projeto, em sua primeira fase, efetuou levantamento, pesquisa, digitalização e disponibilização, no site negritos.com.br, de 147 edições do jornal, entrevistas com pessoas envolvidas com a ARCA e o Abibiman e um ciclo de oficinas, assim composto: O Abibiman e as lutas negras em Arcoverde (Irailda Leandro e Valdira Ramos); Movimentos culturais em Arcoverde: Abibiman, negritude e mobilização cultural (Lula Moreira); Contação de histórias: o coco e a cultura negra em Arcoverde (Assis Calixto); Movimento Negro em Pernambuco: histórias, literatura e educação (Inaldete Pinheiro de Andrade); e O uso de jornais em processos educativos: o caso do jornal Abibiman (Martha Rosa Queiroz), todas realizadas na sede da Associação Urucungo, na cidade de Arcoverde, em janeiro de 2022.
Com essa disponibilização, confirmamos nosso propósito de franquear o acesso a essa preciosa iniciativa da população negra arcoverdense, esperando que, como vem acontecendo com todo o acervo do Negritos, o Abibiman possa ser fonte de muitas pesquisas, reflexões, emoções, a partir do contato com a versão digital do veículo comunicacional que, em sua versão física, expressa uma das materialidades da memória negra do estado de Pernambuco.
Não poderia deixar de registrar o lugar singular e especial do editor do jornal, o incansável Luiz Eloy de Andrade. Luizão, como era conhecido, “fez de um tudo” no Abibiman, como se diz em bom pernambuquês: idealizou, escreveu, editou, vendeu, doou, patrocinou... Realmente, sem Luizão não haveria Abibiman. Possivelmente, o contrário é verdade. Afinal, sua doação ao jornal era plena. A Mestra Severina Lopes, do coco das irmãs Lopes, bem expressou isso em entrevista: Não tinha um coco que ele não tivesse de dentro, não tinha uma festa que ele não tivesse de dentro. [...] Dava o jornalzinho. Aonde ele andava, ele dava o jornalzinho. Vinha trazer toda vez. Vinha pegar histórias da gente. Eu dava a ele. Nós conversava.
Digitalizar e disponibilizar a coleção do jornal Abibiman é uma singela homenagem à trajetória histórica de Luizão e uma forma de difundir suas negras iniciativas, tomando-as como sementes para muitas outras rodas de conversas, nas quais outras gerações possam também se reconhecer como negras e negros, tendo ao alcance das mãos e dos olhos a trajetória do arcoverdense Luiz Eloy de Andrade e seu grande legado, a luta negra no sertão pernambucano e o jornal Abibiman. E, por extensão, um agradecimento a todas as pessoas que somaram esforços e construíram, e constroem, a ARCA e toda a luta contra o racismo em Arcoverde.
Recife, 1º de julho de 2023.
Martha Rosa Figueira Queiroz Coordenadora do Projeto Negritos Pesquisadora do Projeto Abibiman, a voz negra no sertão pernambucano Profa. Adjunta do Centro de Artes, Humanidades e Letras/UFRB Coordenadora ÀROYÉ. Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão Educação para as Relações Étnico-raciais, Educação Patrimonial e Ensino de História
Imprensa negra no Recife e em Salvador
O Projeto NEGRITOS. IMPRENSA NEGRA NO RECIFE E EM SALVADOR é um desejo antigo e coletivo. Remonta à escuta permanente de dois ensinamentos vindos do continente africano: o primeiro, oriundo do seguinte provérbio: “até que os leões contem suas histórias, os contos sobre a caça glorificarão os caçadores.” O outro, presente no livro “Amkoullel, o menino fula”, do escritor malinês Amadou Hampâté Bâ. O sábio nos alerta que a “cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”.
Sim, o Negritos é um projeto de memória, de comunicação, de educação e de resistência. É um projeto para fortalecer a memória negra que construiu o Brasil. É parte do nosso desejo de contar nossas histórias e de registrar as vozes daquelas e daqueles que chegaram antes de nós.
O projeto disponibiliza em formato digital a coleção de cinco jornais pernambucanos, a saber: Angola, Negritude, Negração, Djumbay e Omnira, também um periódico soteropolitano, o Jornal do MNU. O período coberto estende-se de 1981 a 2002.
O acervo digital abriga entrevistas com guardiões da memória, pessoas que participaram da produção dos periódicos e/ou fizeram a sua guarda para que os mesmos chegassem até aqui.
Na intenção de cumprir um papel educativo, a exemplo do que fizeram os jornais contemplados pelo Negritos, o site traz algumas indicações de leitura sobre a imprensa negra e uma pequena coleção de imagens selecionadas dos jornais. Partimos do entendimento de que forma é conteúdo, conteúdo é forma.
Assim, o objetivo maior do Negritos é registrar as memórias de pessoas e grupos que se organizaram para produzir meios de comunicação que abordassem questões diretamente ligadas à comunidade negra. Atividades promovidas pelas organizações, como festas, palestras, lançamento de livros, exposições diversas; posicionamentos políticos acerca de diferentes questões da conjuntura política abrangente; África; difusão de literatos; indicação de leituras e produção de textos formativos, foram pontos em comum nos seis periódicos analisados.
É bonito de ver a quantidade e qualidade dos textos sobre o que nominávamos no início da década de 1980 como necessidade de revisitar a real presença do negro na História do Brasil. Revolta dos Malês, Revolta da Chibata, quilombos, imprensa negra, candomblé, mulher negra, personalidades negras... Conteúdos variados e de qualidade inequívoca que expressam uma interpretação do mundo na perspectiva das organizações negras em foco, pontificando a certeza de que nossas histórias precisavam ser contadas por nós, sobre nós e para todos.
A comunicação se fazia como meio para encontrar novas parcerias, divulgar ações, difundir pensamentos, posicionamentos, e para fortalecer a formação política. Ou seja, uma educomunicação, como sintetizou Mônica Oliveira em entrevista ao Negritos. Ali éramos formados e formávamos pessoas. Desse modo, a resistência negra ao racismo e todas as formas de opressão era registrada e realizada por meio de jornais. O projeto Negritos é parte dessa história.
A disponibilização de cinco jornais pernambucanos e um soteropolitano, em versão digital, oferta ao público a possibilidade de manter vivas importantes memórias negras e reafirma a certeza de que as letras são espaços significativos de combate ao racismo.
Além das/dos guardiões da memória que gentilmente cederam seus acervos para digitalização, suas lembranças e dxs tantxs colaboradorxs, o Negritos recebeu o apoio fundamental do Itaú Cultural por meio do Programa Rumos. A todxs, nossos sinceros agradecimentos.
Desejamos às pessoas que lêem e consultam o projeto Negritos, boa leitura, aprendizados múltiplos e ampla difusão.